Autor: sergioreboucas

O Barril de Amontillado, E. A. Poe

poe_edgar_allan

THE CASK OF AMONTILLADO

Edgar Allan Poe

O BARRIL DE AMONTILLADO

Tradução de Sérgio Rebouças

As milhares de ofensas de Fortunato eu tinha suportado o melhor que podia, mas, quando ele se atreveu a insultar-me, jurei vingança. Vocês, que tão bem conhecem a natureza da minha alma, não pensarão, porém, que expressei alguma ameaça. Lenta seria minha vingança. Este era um ponto definitivamente decidido – mas por isso mesmo que era definitivo, excluía toda ideia de risco. Não apenas devia castigar, mas castigar impunemente. Não se repara uma ofensa quando o castigo alcança o reparador, nem quando o vingador fracassa em mostrar-se como tal a quem o ofendeu. Não se compreenda que por palavras ou por atos tenha eu dado motivo a Fortunato para duvidar de minhas boas intenções. Como de hábito, continuei sorrindo para ele, que não percebeu que meu sorriso agora estava na ideia de seu sacrifício.

Tinha um ponto fraco – este Fortunato – embora em outros sentidos fosse um homem a ser respeitado e até mesmo temido. Orgulhava-se de ser um connoisseur de vinhos. Poucos italianos têm o espírito do verdadeiro virtuoso. Na maior parte seu entusiasmo é adaptado para seguir o momento e a oportunidade – para enganar milionários britânicos e austríacos. Em pintura e em joias, Fortunato, como seus compatriotas, era um impostor – mas em matéria de vinhos envelhecidos ele era sincero. Nesse aspecto eu não diferia substancialmente dele: eu mesmo era hábil em safras italianas, que comprava largamente sempre que podia.

Já quase anoitecia, numa tarde em meio à suprema loucura da semana de carnaval, quando encontrei meu amigo. Acercou-se a mim com excessiva cordialidade, pois estivera bebendo muito. Vestido como um arlequim, o homem levava um traje apertado e listrado, e sua cabeça estava coroada por um cônico gorro de sinos. Eu estava tão satisfeito em vê-lo que senti que não terminaria nunca de esfregar sua mão.

– Meu caro Fortunato – disse eu – que sorte encontrá-lo! Como está tão bem disposto! Imagine que recebi um barril de vinho que passa por Amontillado, mas tenho lá minhas dúvidas.

– Como? – respondeu ele – Amontillado? Um barril? Impossível! E no meio do carnaval!

– Tenho lá minhas dúvidas – insisti –; e fui tolo o bastante para pagar o preço de um Amontillado cheio sem antes consultá-lo a respeito. Não pude encontrá-lo e temia perder uma barganha.

– Amontillado!

– Tenho lá minhas dúvidas.

– Amontillado!

– E preciso me desfazer delas. Como você está ocupado, vou procurar Luchesi. Se há alguém com senso crítico, é ele. Ele me dirá…

– Luchesi é incapaz de distinguir entre um Amontillado e um Xerez.

– E ainda há alguns tolos que pensam que o gosto dele é comparável ao seu.

– Venha, vamos.

– Aonde?

– Às suas caves.

– Não, meu amigo; não vou me aproveitar da sua boa vontade. Percebo que você tem um compromisso. Luchesi…

– Não tenho nenhum compromisso; – venha.

– Não, meu amigo. Não é por causa de compromisso, mas pelo severo resfriado que vejo que lhe aflige. Caves são insuportavelmente úmidas. Estão repletas de salitre.

– Vamos, ainda assim. O resfriado não é nada. Amontillado! Você se deixou enganar. E quanto a Luchesi, é incapaz de distinguir Xerez de Amontillado.

Assim dizendo, Fortunato apoderou-se de meu braço. Pondo uma máscara de seda negra, e enrolando-me cautelosamente com uma roquelaire, deixei que ele me levasse depressa ao meu palácio.

Não havia criados em casa; todos tinham escapado para festejar o carnaval. Eu dissera a eles que não retornaria até a manhã seguinte e havia dado ordens expressas de não saírem de casa. Essas ordens eram suficientes, bem sabia eu, para assegurar seu imediato desaparecimento, todos juntos, tão logo eu lhes desse as costas.

Tirei dois archotes de seus candeeiros e, entregando um a Fortunato, conduzi-o por uma série de quartos até a arcada que levava às caves. Desci uma longa e sinuosa escada, recomendando a ele que seguisse com cuidado. Chegamos então ao fundo e pisamos juntos no úmido solo das catacumbas dos Montresors.

O passo do meu amigo estava trêmulo, e os sinos em seu gorro tilintavam quando ele caminhava.

– O barril – disse ele.

– Está mais adiante – respondi –; mas observe as teias de aranha que brilham nas paredes dessa caverna.

Ele voltou-se em direção a mim e contemplou-me os olhos com duas veladas pupilas que destilavam o fluxo de sua embriaguez.

– Salitre? – perguntou, longamente.

– Salitre – respondi – Há quanto tempo você tem essa tosse?

– Ugh! ugh! ugh! – ugh! ugh! ugh! – ugh! ugh! ugh! – ugh! ugh! ugh! – ugh! ugh! ugh!

O violento acesso impediu que meu pobre amigo respondesse por vários minutos.

– Não é nada – ele disse, por fim.

– Venha – falei, decidido – vamos voltar; sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz, como uma vez eu fui. Sua ausência seria sentida. A minha não faria diferença. Vamos voltar; você ficará doente, e eu não quero ser o responsável por isso. Além do mais há Luchesi…

– Basta! – insistiu ele –; a tosse não é nada; não vai me matar. Não vou morrer por causa de uma tosse.

– Verdade, verdade – respondi –; não tinha nenhuma intenção de alarmá-lo desnecessariamente. Um trago deste Medoc nos protegerá da umidade.

Quebrei então o gargalo de uma garrafa que havia tirado de uma longa fileira do mesmo tipo colocada sobre o solo.

– Beba – disse eu, oferecendo-lhe o vinho.

Ele o ergueu até os lábios com um olhar enviesado. Deteve-se e acenou para mim familiarmente, enquanto seus sinos tilintavam.

– Brindo – começou ele – pelos sepultados que repousam em torno de nós.

– E eu para que você tenha uma longa vida.

Ele novamente tomou meu braço, e continuamos.

– Essas caves – comentou ele – são extensas.

– Os Montresors – respondi – eram uma grande e numerosa família.

– Esqueci quais são suas armas.

– Um enorme pé humano de ouro, em um fundo azul; o pé esmaga uma serpente feroz cujas presas estão incrustadas no calcanhar.

– E o lema?

Nemo me impune lacessit[1].

– Muito bom!

O vinho reluzia em seus olhos, e os sinos tilintavam. Minha própria fantasia estimulava-se com o Medoc. Tínhamos passado por paredes de ossos amontoados, com barris e escoras misturando-se, em direção aos íntimos recessos das catacumbas. Detive-me novamente, e desta vez me atrevi a agarrar Fortunato pelo braço por cima do cotovelo.

– O salitre! – falei –; veja como cresce. Abunda como musgo nas caves. Estamos debaixo do leito do rio. As gotas de orvalho pingam entre os ossos. Vamos, retornemos antes que seja tarde. Sua tosse…

– Não é nada – disse ele –; sigamos em frente. Mas antes, outro trago do Medoc.

Quebrei e dei a ele um frasco de De Grave. Ele esvaziou-o de um trago. Seus olhos flamejaram com uma luz selvagem. Riu e jogou a garrafa para cima com um gesto que não entendi.

Olhei para ele, surpreso. Repetiu o movimento – um movimento grotesco.

– Não compreende? – perguntou ele.

– Não – respondi.

– Então você não é da irmandade.

– Como?

– Você não é dos maçons.

– Sim, sim – disse eu –; sim, sim.

– Você? Impossível! Um maçom?

– Uma prova – disse ele – dê-me um sinal.

– Aqui está – respondi eu, tirando uma pá de pedreiro por baixo das dobras de meu roquelaire.

– Você está brincando – exclamou ele, recuando alguns passos. Mas vamos ver esse Amontillado.

– Como queira – disse eu, guardando o utensílio sob a capa e oferecendo outra vez meu braço a ele, que se inclinou pesadamente. Continuamos nosso percurso em busca do Amontillado. Passamos por uma fileira de arcos baixos, descemos, seguimos adiante e, descendo novamente, chegamos a uma profunda cripta, onde a escassez de ar era tal que nossos archotes brilhavam sem quase mais flamejar.

No mais remoto fim da cripta aparecia outra menos espaçosa. Suas paredes haviam sido revestidas com restos humanos, amontoados até o alto da abóbada, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três lados dessa cripta anterior estavam ornamentados dessa forma. No quarto lado os ossos tinham sido atirados ao chão e jaziam promiscuamente sobre a terra, formando em um ponto um túmulo de certo volume. Dentro do muro assim exposto pela queda dos ossos, percebíamos ainda um nicho interior, de quatro pés de profundidade, três de largura e seis ou sete de altura. Não parecia ter sido construído para algum uso especial ali dentro, já que era formado apenas pelo intervalo entre dois dos colossais suportes do teto das catacumbas, e estava apoiado em uma das paredes de sólido granito que os limitavam.

Era em vão que Fortunato, erguendo seu débil archote, esforçava-se por espreitar o fundo do nicho. A fraca luz não nos permitia ver onde terminava.

– Prossiga – disse eu –; aqui está o Amontillado. Quanto a Luchesi…

– É um ignorante – interrompeu meu amigo, avançando com passo instável, enquanto eu o seguia apegado a seus calcanhares. Em um instante ele tinha alcançado a extremidade do nicho e, ao encontrar a rocha a impedir-lhe a marcha, deteve-se estupidamente aturdido. Um instante mais e eu já o teria acorrentado junto ao granito. Na superfície da rocha havia duas argolas de ferro, distantes entre si por mais ou menos dois pés, horizontalmente. De uma delas pendia uma pequena corrente, da outra um cadeado. Passando-lhe a corrente ao redor da cintura, bastaram-me poucos segundos para acorrentá-lo. Ele estava muito aturdido para resistir. Removendo a chave, retirei-me do nicho.

– Passe sua mão – disse eu – sobre a parede; você poderá sentir o salitre. Realmente é muito úmido. Uma vez mais me permita implorar que você volte. Não? Então decididamente tenho de deixá-lo. Mas antes lhe devo prestar pequenos cuidados ao meu alcance.

– O Amontillado! – exclamou meu amigo, ainda não recobrado de seu assombro.

– Ah, claro – respondi –; o Amontillado.

Ao dizer essas palavras, dirigi-me até o monte de ossos de que antes falei. Jogando-os de lado, logo descobri certa quantidade de blocos de pedra e de morteiro. Com esses materiais e com a ajuda de minha pá de pedreiro, comecei vigorosamente a emparedar a entrada do nicho.

Eu mal havia levantado a primeira camada da alvenaria quando percebi que a embriaguez de Fortunato se dissipara em grande parte. A primeira indicação que tive disso foi um escasso clamor vindo do fundo do nicho. Não era o clamor de um homem bêbado. Fez-se então um longo e obstinado silêncio. Levantei a segunda camada, e a terceira, e a quarta; então ouvi a furiosa vibração das correntes. O barulho durou vários minutos, durante os quais, para que pudesse escutá-lo com maior satisfação, interrompi meus trabalhos e sentei-me sobre os ossos. Quando finalmente o barulho diminuiu, retomei a pá e terminei sem interrupção a quinta, a sexta e a sétima camadas. O muro agora estava perto do nível do meu peito. Detive-me outra vez e, segurando o archote sobre a alvenaria, lancei seus débeis raios sobre a figura ali encerrada.

Uma sucessão de altos e estridentes gritos, irrompendo da garganta daquela figura acorrentada, pareciam empurrar-me violentamente para trás. Por um breve instante hesitei – tremi. Desembainhando meu florete, comecei a tatear com ele o interior do nicho, mas uma rápida reflexão bastou para tranquilizar-me. Passei minha mão sobre a sólida textura das catacumbas e senti-me satisfeito. Reaproximei-me da parede; respondi aos berros do outro que clamava. Fiz eco – ajudei – superei-os em volume e em força. Fiz isso, e então os gritos cresceram ainda mais.

Era já meia-noite, e minha tarefa estava para terminar. Eu havia completado a oitava, a nona, e a décima camada. Concluíra uma parte da décima primeira e última; não restava senão uma simples pedra a ser posta e fixada. Lutei com seu peso; coloquei-a parcialmente em sua posição. Mas agora emanava do nicho uma fraca risada que me eriçou os cabelos. Foi seguida por uma triste voz, em que me custou reconhecer a do nobre Fortunato. A voz dizia…

– Ha! Ha! Ha! – He! He! He! – uma ótima brincadeira, de fato – uma excelente piada. Vamos dar boas gargalhadas no palazzo – He! He! He! – durante o nosso vinho – He! He! He!

– O Amontillado! – disse eu.

– He! He! He! – He! He! He! – sim, o Amontillado. Mas não está ficando tarde? Não nos estarão esperando no palazzo, Lady Fortunato e os demais? Vamos.

– Sim – continuei – vamos.

Pelo amor de Deus, Montresor!

– Sim – falei – pelo amor de Deus!

Mas para essas palavras em vão esperei uma resposta. Impacientei-me. E chamei em voz alta:

– Fortunato!

Sem resposta. Chamei outra vez:

– Fortunato!

Ainda nenhuma resposta. Empurrei uma tocha através da abertura remanescente e deixei-a cair dentro. Veio para fora em resposta apenas um tilintar de sinos. Meu ânimo arrefeceu por conta da umidade das catacumbas. Apressei-me em dar um fim ao meu trabalho. Encaixei a última pedra em sua posição; fixei-a em cima. Contra a nova alvenaria reergui o antigo monte de ossos. Durante meio século nenhum mortal os perturbou. In pace requiescat!

 

NOTAS DE TRADUÇÃO

“O Barril de Amontillado” é meu conto favorito, a máxima expressão do efeito e do arrebatamento que uma história curta, tecida com deslumbrante intensidade psicológica, pode inspirar. Essa tradução, voltada para o leitor brasileiro, encerra alguns momentos relevantes, devidos marcadamente a algumas nuanças do idioma original. Como não seria próprio interromper o fluxo da narrativa com notas de rodapé, exponho-os brevemente neste final.

No episódio em que Montresor exibe a Fortunato, por baixo de um pano, uma pá de pedreiro, após ser instado a dar uma prova de pertinência à irmandade dos maçons, na tradução, infelizmente, perde-se algo da força expressiva do trocadilho original. Pedreiro, em inglês, diz-se mason, termo que designa também o maçom (membro da maçonaria). Por outro lado, trowell, em inglês, é um termo facilmente identificado como a ferramenta do mason. Em uma genial construção de Poe, Montresor antecipa o instrumento (espátula ou colher de pedreiro – trowell, no original) que vitimaria Fortunato, por conta da conexão que faz com a figura do mason (pedreiro), em torno da qual Fortunato reclamara a Montresor prova ou sinal de pertinência à irmandade dos masons (maçons – membros da Maçonaria). Embora em português exista a palavra maçom como sinônimo de pedreiro, dificilmente o leitor de língua portuguesa identificará na primeira uma referência ao último, de modo que se optou mesmo por “pá de pedreiro”, em vez de “pá de maçom”. Em todo caso, a espátula é um dos conhecidos símbolos da maçonaria.  

Já no instante em que Fortunato menciona a Montresor o “Amontillado”, o anfitrião responde “Ah, sim, o Amontillado”, e logo em seguida se dirige ao monte de ossos. Aqui há uma interessante conexão que escapará aos leitores de língua inglesa que ignorem o espanhol. Amontillado, nome do vinho, designa o vinho à maneira da cidade (região) espanhola de Montilla e remete à palavra monte, podendo lembrar algo como “amontoado”. Ao ouvir de Fortunato a cobrança pelo Amontillado, Montresor logo deu pela necessidade de remover o monte (o amontoado) de ossos que cobria os blocos que emparedariam a vítima. No original, o termo pile (pilha, monte) não tem a ligação com o Amontillado, privilégio de hispânicos e, também, de portugueses. Raro exemplo em que a tradução supera o original em extensão expressiva, por força de um artifício criado pelo próprio Poe.

[1] Ninguém me ofende impunemente (NT)

A Ciência segundo Chesterton

chesterton_02_a

Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) é um escritor genial em suas múltiplas vozes (novelista e contista policial, ensaísta, filósofo, teólogo…). Em nosso tempo, quando ganha força o cientificismo de Stephen Hawking, que chegou a proclamar “a morte da filosofia” (em seu livro “The Great Design”), é interessante renovar a força de um ensaio de Chesterton escrito em 1909. Apresentamos aos leitores brasileiros um trecho pungente, em tradução nossa.

Trecho do ensaio “Ciência: Prós e Contras”, de G. K. Chesterton. The Illustrated London News, 09 de outubro de 1909

In: CHESTERTON, G. K. Collected Works – Volume XXVIII: The Illustrated London News 1908-1910. San Francisco: Ignatius, 1987, pp. 405-407

Tradução de Sérgio Rebouças

[…]

Pois o que tem nos afetado no mundo moderno não é em nenhum sentido o conhecimento físico em si mesmo, mas simplesmente um equívoco estúpido sobre o que seja conhecimento físico e sobre o que ele possa proporcionar. É verdadeiramente tão óbvio que o conhecimento físico pode trazer conforto para o homem como que não pode fazer um homem feliz. É tão certo que existem coisas tais como as drogas quanto que não existem coisas tais como poções do amor. A ciência natural é algo que está na periferia da vida humana; aventureira, empolgante e essencialmente fantasiosa. Não tem nada que ver com o centro da vida humana. Telefones, dirigíveis, rádio e o Pólo Norte não são em última análise bons, mas tampouco são ruins. A ciência natural é sempre das duas uma: ou uma ferramenta ou um brinquedo. Em seu mais elevado e nobre grau, claro, é um brinquedo. Um brinquedo encerra muito maior grandeza filosófica que uma ferramenta, pela simples razão de que um brinquedo é avaliado por si mesmo, e uma ferramenta apenas por alguma outra coisa. A ferramenta é um meio; o brinquedo, um fim. Você usa um martelo para fazer uma casa de bonecas; caso tentasse usar uma casa de bonecas para fazer um martelo, você logo se convenceria de que selecionara um instrumento um tanto inapropriado. Quando olhamos através de um binóculo para as forças alemãs invadindo a Inglaterra, estamos usando a ciência como uma ferramenta. Quando olhamos através de um telescópio para os extraordinários planetas e os remotos sistemas, estamos usando a ciência como um brinquedo. O telefone é um dos instrumentos da informação; o Sistema Solar é uma de suas alegrias ou frivolidades. Quando a ciência me diz que há uma casa em Ealing com a qual posso me comunicar, eu me interesso; quando a ciência me diz que há uma estrela em Sirius, eu me divirto. Mas em nenhum caso a ciência pode ser outra coisa além de uma ferramenta ou um brinquedo. Jamais pode ser o homem usando a ferramenta. Jamais pode ser a criança divertindo-se com o brinquedo. Jamais pode, em síntese, ser aquilo que tem autoridade natural sobre o brinquedo e a ferramenta. Pois a criança tem o reino dos céus, e o homem tem o reino da terra.

O único mal que a ciência tem sempre buscado em nosso tempo é aquele de ditar não apenas o que deve ser conhecido, mas o estado de espírito no qual o objeto deve ser apreciado. Não importa nem um pouco se olhamos para um poste de iluminação ou uma árvore, contanto que os olhemos sob um certo estado de espírito. Não importa nem um pouco se falamos por telefone ou por um buraco na parede, contanto que a conversa seja coerente. Mas não podemos perguntar ao poste de iluminação em que espírito ele deve ser apreciado. Se fizermos isso, encontraremos as jovens damas do outro lado um tanto rispidamente insensíveis ao patético de nossa posição. A ciência não pode impor nenhuma filosofia, não mais que um telefone pode nos ditar o que dizer. Se estivermos indo para uma grandiosa e merecida aventura, será de todo mais glorioso irmos em um dirigível. Mas não podemos parar no meio da aventura para perguntar ao dirigível o que vem a ser uma merecida aventura. Se estivermos correndo para nos casar, poderia ser emocionante correr em um automóvel; mas não perguntamos ao automóvel com quem iremos casar. Em geral, muito raramente perguntamos ao motorista. Este bastante elementar e trivial princípio basta para todas as relações da ciência natural com a humanidade. Um homem não pergunta a seu cavalo para onde irá; nem perguntará ao seu carro; nem perguntará ao motorista de seu carro; nem perguntará ao inventor de seu carro. A ciência é uma coisa esplêndida; se você disser a ela para onde ir.

[…]

 

October 9, 1909

Science: Pro and Con

[…]

For what we have suffered from in the modern world is not in any sense physical knowledge itself, but simply a stupid mistake about what physical knowledge is and what it can do. It is quite as obvious that physical knowledge may make a man comfortable as it is that it cannot make a man happy. It is as certain that there are such things as drugs as that there are no such things as love-potions. Physical science is a thing on the outskirts of human life; adventurous, exciting, and essentially fanciful. It has nothing to do with the centre of human life at all. Telephones, flying-ships, radium, and the North Pole are not in the ultimate sense good, but neither are they bad. Physical science is always one of two things; it is either a tool or a toy. At its highest and noblest, of course, it is a toy. A toy is a thing of far greater philosophical grandeur than a tool; for the simple reason that a toy is valued for itself and a tool only for something else. A tool is a means, a toy is an end. You use a hammer to make a doll’s house; if you tried to use a doll’s house to make a hammer you would soon be convinced that you had selected a somewhat clumsy instrument. When we look through a field-glass at the German forces invading England we are using science as a tool. When we look through a telescope at the tremendous planets and the remote systems, we are using science as a tool. The telephone is one of the uses of the inquiry; the Solar System is one of its gaieties or levities. When science tells me that there is a house in Ealing that I can communicate with, I am interested; when science says me there is a star in Sirius I cannot communicate with, I am amused. But in neither case can science be anything else except a tool or a toy. It can never be the man using the tool. It can never be the child playing with the toy. It can never, in short, be the thing that has natural authority over toy and tool. For the child has the kingdom of heaven, and the man has the kingdom of the earth.

The only evil that science has ever attempted in our time has been that of dictating not only what should be known, but the spirit in which it should be regarded. It does not in the least matter whether we look at a lamp-post or a tree as long as we look at it in a certain spirit. It does not in the least matter whether we talk through a telephone or through a hole in the wall so long as we talk sense. But we must not ask the lamp-post in what spirit it ought to be regarded. If we do so, we shall find it as deaf as a post. We must not ask the telephone what we are to say to it. If we do so, we shall find the young ladies at the exchange somewhat sharply insensible to the pathos of our position. Science must not impose any philosophy, any more than a telephone must tell us what to say. If we are going on a great and just adventure, it will be all the more glorious to go on a flying-ship. But we must not stop in the middle of the adventure to ask the flying-ship what a just adventure is. If we are rushing to get married, it may be thrilling to rush in a motor-car; but we do not ask the motor-car whom we shall marry. Generally speaking, we hardly ever ask the chauffeur. That quite elementary and commonplace principle suffices for all the relations of physical science with mankind. A man does not ask his horse where he shall go; neither shall he ask his horseless carriage; neither shall he ask the driver of his horseless carriage; neither shall he ask the inventor of his carriage. Science is a splendid thing; if you tell it where to go to.

[…]

“O Condutor de Ônibus”, E. F. Benson

Também na página “Inéditos”, confira a tradução de “The Bus-Conductor”, de E. F. Benson.

O conto “The Bus-Conductor” (“O Condutor de Ônibus”), de Edward Frederic Benson (1867-1940), foi originalmente publicado na revista britânica Pall Mall Magazine, em 1906. Benson, além de escritor, foi um destacado atleta, tendo inclusive representado a Inglaterra em competições de patinação artística no gelo. Apesar de mais conhecido pela série “Mapp and Lucia”, Benson alcança seu máximo efeito expressivo, na minha opinião, em seus intrigantes contos de fantasmas. A tradução que segue, publicada na revista Arte & Letra – edição U (Curitiba, 2013), é atualmente o único texto de Benson disponível no Brasil; mas outros virão em breve! Tive a oportunidade de visitar um dos endereços de Benson em Londres, no número 25 do Brompton Square: é a casa que se vê na foto, que pode bem ser pensada como a casa do conto. Muito bom proveito!

DSC07385

O CONDUTOR DE ÔNIBUS

E. F. Benson

Tradução de Sérgio Rebouças

Meu amigo Hugh Grainger e eu tínhamos acabado de retornar de uma visita de dois dias ao interior, onde havíamos nos hospedado em uma casa de sinistra reputação que se supunha assombrada por fantasmas de um tipo peculiarmente assustador e hostil. A própria casa reunia as características comuns do gênero, em estilo jacobino e com painéis de carvalho, longas passagens escuras e quartos de tetos abobadados. Situava-se, além disso, muito distante, envolvida pelos ramos de sombrios pinheiros que murmuravam e sussurravam no escuro, e durante todo o tempo em que estivemos lá, uma ventania vinda do sudoeste com torrentes de reprovadora chuva havia predominado, de modo que dia e noite estranhas vozes gemiam e flauteavam nas chaminés, uma companhia de inquietos espíritos mantinha colóquio entre as árvores, e repentinas marchas e batidas acenavam desde as vidraças. Mas apesar dessas condições ao redor, que já eram suficientes por si próprias – pode-se quase dizer – para espontaneamente gerar fenômenos ocultos, nada de qualquer ordem tinha ocorrido. Devo acrescentar, além do mais, que meu próprio estado de espírito estava singularmente predisposto a receber ou até a inventar as visões e os sons que tínhamos ido buscar, pois me encontrava, confesso, durante todo o tempo em que ali permanecemos, em um estado de abjeta apreensão, e me deitei acordado ambas as noites em meio a horas de aterrorizado desassossego, com medo do escuro, e com ainda mais medo do que uma vela acesa poderia me revelar.

Hugh Grainger, na noite seguinte ao nosso retorno à cidade, jantara comigo, e após o jantar, nossa conversa, como era natural, logo voltou a esses intrigantes tópicos.

– Mas não posso imaginar por qual motivo você vai em busca de fantasmas – disse ele – porque seus dentes estavam rangendo e seus olhos saltando fora da cabeça durante todo o tempo em que esteve lá, e isso por puro pavor. Ou você gosta de ficar com medo?

Hugh, ainda que em geral inteligente, é estúpido em certos aspectos, e aí está um deles.

– Ah, claro, gosto de ficar com medo – respondi –. Quero ser feito de arrepio e arrepio e arrepio. O medo é a mais absorvente e voluptuosa das emoções. Esquecemos todo o resto quando estamos com medo.

– Bem, o fato de que nenhum de nós viu qualquer coisa – disse ele – confirma o que sempre pensei.

– E o que você sempre pensou?

– Que esses fenômenos são puramente objetivos, e não subjetivos, e que o estado de espírito de alguém nada tem a ver com a faculdade humana que os percebe, nem tampouco as circunstâncias ou os ambientes têm algo que ver com eles. Veja Osburton. Tem há anos a reputação de ser uma casa assombrada – e certamente reúne todos os acessórios de uma. Veja você mesmo, também, com todos os nervos à flor da pele, temeroso em olhar ao redor ou acender uma vela por medo de ver algo! Seguramente apareceriam para o homem certo no lugar certo, se fantasmas fossem subjetivos.

Levantou-se, acendeu um cigarro, e olhando para ele – que media por volta de seis pés de altura, tanto quanto era largo –, senti uma resposta nos lábios, pois não pude evitar que meu pensamento retrocedesse a certo período de sua vida, quando, por alguma causa que, ao que sei, nunca contou a ninguém, ele se converteu em uma trêmula massa de nervos desordenados. Curiosamente, no mesmo momento e pela primeira vez, ele próprio começou a falar sobre isso.

– Você pode objetar que tampouco valia a pena para mim ir até lá, porque muito claramente eu era o homem errado no lugar errado. Mas eu não era. Você, mesmo com suas apreensões e expectativas, nunca viu um fantasma. Mas eu sim, apesar de ser a última pessoa no mundo que você imaginaria que pudesse ter visto um, e embora meus nervos hoje estejam recuperados, aquilo me desfez em pedaços.

Sentou-se novamente na cadeira.

– Sem dúvida você recordará que fiquei aos pedaços – continuou ele – e como acredito que estou saudável de novo agora, gostaria de lhe contar algo a respeito. Mas antes não podia; não conseguia falar disso com ninguém. Ainda assim, não havia nenhuma razão para temer, pois o que vi foi certamente o mais prestativo e amigável fantasma. Mas ele surgiu do plano das sombras; parecia de repente fora da noite e do mistério que permeia a vida.

“Quero primeiro lhe expor muito concisamente minha teoria a respeito da aparição de fantasmas – prosseguiu ele – e posso explicar isso melhor por uma analogia, uma imagem. Imagine então que você, eu e todo o mundo somos pessoas cujo olho se encontra do outro lado de um minúsculo buraco aberto em uma folha de papelão que está continuamente se movendo e girando em volta. Face a face com essa folha de papelão há outra, que também, por leis próprias, está em perpétuo, mas independente movimento. Nela também há um buraco, e quando, de maneira aparentemente fortuita, esses dois buracos, aquele através do qual estamos sempre olhando e o outro no plano espiritual, nivelam-se um em frente ao outro, vemos  através de ambos, e então apenas as imagens e os sons do mundo espiritual tornam-se visíveis ou audíveis para nós. Com a maioria das pessoas, esses buracos nunca ficam nivelados durante toda a vida. Mas na hora da morte sim, e então essas pessoas restam imóveis. É assim, imagino eu, que se ‘atravessa’.

“Agora, em certas naturezas, essas aberturas são relativamente amplas e estão em constante oposição. Videntes, médiuns são assim. Entretanto, ao que sei, não tenho poderes videntes nem mediúnicos. Sou portanto o tipo de pessoa que há tempos convenceu a si mesma de que nunca veria um fantasma. Era, por assim dizer, um incalculável acaso que minha diminuta abertura de observação ficasse nivelada com a outra. Mas ficou: e me arrastou para fora do tempo”.

Eu já tinha ouvido essa teoria antes, e embora Hugh a expusesse de forma mais pitoresca, não havia nada minimamente convincente ou prático nela. Podia ser assim, ou na mesma medida podia não ser.

– Espero que seu fantasma tenha sido mais original que sua teoria – disse eu, a fim de trazê-lo de volta ao ponto.

– Sim, acho que foi. Você mesmo julgará.

Adicionei carvão e reanimei o fogo da lareira. Hugh tem, assim sempre considerei, um grande talento para contar histórias e aquele senso dramático tão caro ao narrador. De fato, no passado sugeri a ele que levasse isso como uma profissão, sentando perto da fonte em Piccadilly Circus, quando as condições estivessem, como de costume, desfavoráveis, para contar histórias aos passantes na rua, à maneira árabe, a troco de gorjetas. A maior parte da humanidade, estou consciente, não gosta de histórias longas, mas para alguns poucos, entre os quais me incluo, que realmente gostam de escutar compridos relatos de experiências, Hugh é o narrador ideal. Não me importo com suas teorias, ou com suas analogias, mas quando se trata de fatos, de coisas que aconteceram, gosto que ele seja demorado.

– Prossiga, por favor, e devagar – disse eu –. A brevidade pode até ser a alma da perspicácia, mas é a ruína do contador de histórias. Quero ouvir quando, onde e como tudo aconteceu, o que você tinha almoçado, onde havia jantado e o que…

Hugh começou:

– Foi em 24 de junho, exatamente dezoito meses atrás – disse ele –. Eu havia deixado meu apartamento, você deve lembrar, e vindo do interior para passar uma semana com você. Tínhamos jantado sozinhos aqui…

Não pude deixar de interromper.

– Você viu o fantasma aqui? – perguntei –. Neste cubículo de casa situado no meio de uma rua moderna?

– Eu estava na casa quando o vi.

Mantive-me em silêncio.

– Tínhamos jantado sozinhos aqui em Graeme Street – continuou ele –; após o jantar, saí direto para alguma festa, e você parou em casa. Seu criado não esperou pelo jantar, e quando perguntei por onde ele andava, você me disse que ele estava doente e, ao que me pareceu, mudou de assunto um tanto abruptamente. Você me deu a chave de casa quando saí, e no meu retorno verifiquei que você já tinha ido para a cama. Havia, porém, muitas cartas para mim, que reclamavam respostas. Escrevi-as imediatamente e postei-as na caixa de correio em frente. Então suponho que era um tanto tarde quando subi.

“Você me havia posto no quarto da frente, no terceiro andar, olhando para a rua, um quarto que me pareceu ser geralmente ocupado por você mesmo. Era uma noite muito quente, e embora houvesse um luar quando parti para a minha festa, no meu retorno o céu inteiro estava coberto de nuvens, e ambos prenunciavam uma tempestade para antes da manhã. Eu me sentia muito sonolento e pesado, e não foi antes de ir para a cama que percebi pelas sombras dos caixilhos nas persianas que apenas uma das janelas estava aberta. Mas não parecia valer a pena levantar da cama para abrir a outra janela, embora estivesse um tanto abafado e desconfortável, de modo que preferi dormir.

“Não lembro qual a hora quando acordei, mas por certo ainda não era madrugada, e não me recordo de ter vivenciado tão extraordinária quietude como a que então dominava. Tampouco havia sons de pedestres ou de tráfego viário; a música da vida parecia absolutamente muda. Mas agora, ao invés de sonolento e pesado, sentia-me perfeitamente revigorado e esperto, embora deva ter dormido uma hora ou duas no máximo, já que sequer era madrugada, e o esforço que antes parecera não valer a pena fazer, aquele de levantar da cama e abrir a outra janela, mostrava-se bastante fácil agora, de modo que ergui a persiana, deixando-a completamente aberta, e inclinei-a para fora, pois de alguma maneira eu estava fervendo e ansiava por ar. Mesmo do lado de fora a opressão era bem perceptível, e embora, ao que me consta, eu não seja facilmente propenso a sentir os efeitos mentais causados pelo clima, notava um terrível arrepio vindo sobre mim. Tentei investigar isso, mas sem sucesso; o dia anterior tinha sido agradável, eu esperava por um dia agradável amanhã, e mesmo assim estava cheio de uma inominável apreensão. Sentia-me, além de tudo, horrivelmente sozinho naquela quietude antes da madrugada.

“Então ouvi de repente e vindo de não muito longe o som de algum veículo que se aproximava; eu podia discernir o passo de dois cavalos andando em marcha lenta. Estavam vindo, embora ainda não se visse, pela rua, e mesmo essa indicação de vida não amenizou aquele terrível sentimento de solidão de que falei. E também a turva e impronunciada maneira com que vinham pareceu-me ter algo que ver com a causa da minha opressão.

“Então o veículo apareceu à vista. Inicialmente não pude distinguir o que era. Depois vi que os cavalos eram negros e tinham longas caudas, e o que eles arrastavam era feito de vidro, mas tinha uma base preta. Era um carro fúnebre. Vazio.

“Movia-se desse lado da rua. Parou em frente à sua porta.

“Logo me ocorreu a óbvia solução. Você havia dito no jantar que seu criado estava doente e me pareceu relutante em falar mais sobre essa doença. Sem dúvida, assim imaginei, ele estava morto, e por alguma razão, talvez porque você não queria que eu soubesse algo a respeito disso, o corpo seria removido durante a noite. Isso, devo lhe dizer, me passou pela cabeça instantaneamente, e não me ocorreu quão improvável de fato era, até que a próxima coisa acontecesse.

“Ainda estava me inclinando para fora da janela, e também refletindo, mesmo que apenas momentaneamente, sobre como era estranho que eu visse coisas – ou mais propriamente a única coisa para que estava olhando – com tanta nitidez. Claro, havia uma lua atrás das nuvens, mas era curioso como cada detalhe do carro fúnebre podia ser visto. Havia apenas um homem, o motorista, no carro, e no mais a rua seguia absolutamente vazia. Era para ele que eu olhava agora. Podia ver cada detalhe de suas roupas, mas de onde eu estava, tão alto acima dele, não conseguia ver seu rosto. Ele vestia calças cinzas, botas marrons, um casaco abotoado até em cima e um chapéu de palha. Sobre um ombro havia uma alça, que parecia sustentar algum tipo de bolsa pequena. Ele parecia exatamente como – bem, pela minha descrição, com o que exatamente parecia ele?

– Ora, um condutor de ônibus! – disse eu, instantaneamente.

– Assim pensei, e exatamente quando estava pensando isso, ele levantou a vista para mim. Tinha um rosto um tanto longo e afilado, e em sua bochecha esquerda havia um sinal com uma protuberância de cabelos escuros. Tudo isso era tão nítido como se fosse meio-dia, e como se eu estivesse a apenas uma jarda dele. Mas – era tudo tão instantâneo que leva muito tempo para contar – sequer tive tempo de achar estranho que o motorista do carro estivesse vestido de maneira tão pouco fúnebre.

“Então ele acenou seu chapéu para mim e sacudiu o polegar sobre o ombro.

“– Só cabe mais um dentro, senhor” – disse ele.

“Havia algo tão abominável, tão rude, tão inflexível naquilo que instantaneamente puxei minha cabeça para dentro, baixei a persiana de volta, e então, por algum motivo que desconheço, liguei a luz elétrica na intenção de ver qual era a hora. Os ponteiros de meu relógio marcavam onze e meia.

“Foi assim que pela primeira vez, creio, uma dúvida me passou pela cabeça quanto à natureza do que eu tinha acabado de ver. Mas apenas tornei a desligar a luz, fui para a cama e comecei a pensar. Eu havia jantado; tinha ido a uma festa, voltado e escrito cartas, tinha ido para a cama e dormido. Então como poderiam ser onze e meia?… Ou… que onze e meia era essa?

“Foi quando outra fácil solução me ocorreu; meu relógio devia ter parado. Mas não; eu podia ouvi-lo funcionando.

“Tudo estava quieto e silencioso outra vez. Eu esperava a cada momento ouvir passos abafados nas escadas, passos movendo-se lenta e curtamente sob a pressão de uma pesada carga, mas vindo de dentro da casa não havia nenhum som de qualquer tipo. No lado de fora também predominava o mesmo silêncio morto, enquanto o carro fúnebre esperava frente à porta. Os minutos batiam e batiam, e lentamente comecei a ver uma diferença na luz do quarto, compreendendo que a madrugada começava a desaparecer do lado de fora. Mas como isso tinha acontecido, então, se o corpo era para ser removido à noite e não havia sido ainda, e o carro fúnebre ainda esperava, quando a manhã já estava chegando?

“Passado pouco tempo, levantei da cama outra vez, e com a sensação de que a força do corpo arrefecia, fui até a janela e puxei de volta a persiana. A madrugada estava partindo rapidamente; a rua inteira acendia-se com aquele tom de luz prateada da manhã. Mas não havia nenhum carro fúnebre lá.

“Uma vez mais olhei em meu relógio. Marcava exatamente quatro e quinze. Mas eu juraria que nem meia hora havia passado desde que o relógio me disse que eram onze e meia.

“Logo uma curiosa sensação dupla, como se eu estivesse vivendo no presente e ao mesmo tempo houvesse vivido em algum outro tempo, caiu sobre mim. Era a madrugada de 25 de junho, e a rua,  naturalmente, estava vazia. Mas um pequeno instante antes o motorista de um carro fúnebre tinha falado comigo, e eram então onze e meia. O que era aquele motorista, a que plano pertencia ele? E de novo que onze e meia era aquela que eu havia visto gravada no mostrador do meu relógio?

“Então disse a mim mesmo que a coisa toda tinha sido um sonho. Mas se você me perguntar se acredito no que disse a mim mesmo, devo confessar que não.

“Seu criado não apareceu para o café na manhã seguinte, nem o vi mais antes de partir à tarde. Acho que se o encontrasse, eu teria contado a você a respeito de tudo isso, mas era ainda possível, você sabe, que o que eu tinha visto fosse um real carro fúnebre, dirigido por um real motorista, apesar da sinistra alegria do rosto que ele levantou para mim e da frivolidade de sua mão apontada. Era possível que eu tivesse caído no sono logo depois de vê-lo e dormido durante a remoção do corpo e a partida do carro fúnebre. Então não falei disso para você”.

Havia algo admiravelmente franco e prosaico em tudo isso; aqui não se trata de casas de estilo jacobino com painéis de carvalho e circundadas por úmidos pinheiros, e de alguma maneira a ausência de ambientes adequados torna a história toda ainda mais impressionante. Por um momento, no entanto, uma dúvida me assaltou.

– Não me diga que isso tudo foi um sonho – disse eu.

– Não sei se foi. Posso apenas dizer que acredito que estava bem acordado. Em todo caso o restante da história é… curioso.

“Saí da cidade à tarde – continuou ele – e posso dizer que sequer por um momento consegui ter a sensação evocativa do que eu havia visto ou sonhado aquela noite. Estava sempre presente em mim como alguma visão ainda não realizada. Era como se algum relógio tivesse marcado todos os quartos de hora, e eu ainda esperasse ouvir qual o horário certo.

“Exatamente um mês depois estive em Londres novamente, mas apenas por um dia. Cheguei à estação Victoria por volta das onze e tomei o metrô para Sloane Square na intenção de ver se você estava na cidade e se me concederia um almoço. Era uma manhã escaldante, e eu tencionava pegar um ônibus partindo de King’s Road até Graeme Street. Havia um estacionado na esquina logo quando saí da estação, mas vi que o topo estava completo, e o interior parecia estar lotado também. Logo que subi, o condutor, que, suponho, estivera dentro recolhendo bilhetes ou algo do tipo, saiu junto à passagem a pouca distância de mim. Usava calças cinzas, botas marrons, um casaco preto abotoado, um chapéu de palha, e sobre seu ombro havia uma alça de que pendia sua pequena máquina de perfurar bilhetes. Vi seu rosto, também; era o rosto do motorista do carro fúnebre, com uma protuberância na bochecha esquerda. Então ele falou comigo, erguendo o polegar acima do ombro.

“– Só cabe mais um dentro, senhor” – disse ele.

“Com isso, uma espécie de pânico tomou posse de mim, e lembro que gesticulei ferozmente com meus braços, gritando: ‘não, não!’ Mas naquele momento eu vivia não na hora que então estava passando, mas naquela hora que havia passado um mês antes, quando me inclinei a partir da janela aqui do seu quarto pouco antes que a madrugada terminasse. Nesse momento também soube que minha abertura de observação tinha estado nivelada com a abertura do mundo espiritual.

“O que eu tinha visto ali encerrava algum significado, agora sendo cumprido, para além do significado dos acontecimentos triviais de hoje e de amanhã. Os Poderes daquilo que conhecemos tão pouco obravam visivelmente diante de mim. E fiquei lá na calçada sacudindo e tremendo.

“Eu estava em frente ao posto de correio situado na esquina, e logo que o ônibus partiu, meu olhar caiu no relógio da janela de lá. Não preciso dizer a você qual era a hora.

“Talvez nem precise contar o resto, pois você provavelmente o imagina, já que não terá esquecido o que aconteceu na esquina de Sloane Square no final de julho, no verão antes do último. O ônibus arrancou da calçada em direção à rua de modo a contornar uma van que estava parada em frente. Naquele momento desceu a King’s Road um grande automóvel em um percurso terrivelmente perigoso. Bateu de cheio no ônibus, trespassando-o como uma furadeira perfura uma tábua.

Ele parou.

– E essa é minha história – disse ele.

Sobre ‘Vertidos’

Vertidos foi criado para divulgar os resultados de minhas versões, como chamo os exercícios de tradução de textos – contos, romances, poemas – de alguns dos meus autores favoritos. A proposta, antes de tudo, é de oferecer aos leitores brasileiros textos pouco ou nunca vertidos para a língua portuguesa – autores não mencionados, ou autores resgatados do esquecimento; autores desconhecidos entre nós ou textos desconhecidos de autores conhecidos. Nessa primeira categoria, dou o exemplo do escritor britânico E. F. Benson – autor vitoriano destacado por seus ótimos contos de fantasmas e em cuja obra venho trabalhando há algum tempo. Nesse caso, orgulha-me ter oferecido pioneiramente um conto jamais antes traduzido (ao que se tem notícia) para o português: “O condutor de ônibus”, publicado na Revista “Arte & Letra”, edição U (Curitiba, 2013), e que será apresentado também neste Blog. De outra parte, um autor conhecido entre nós como Raymond Chandler tem alguns grandes textos ainda inéditos. Mas não é só; também aqui lançaremos novas versões de textos já conhecidos (e até multiplamente traduzidos) entre nós – como “O Barril de Amontillado”, de Edgar Allan Poe, este mágico fundamental da história curta. Por aí já se adivinha um prestígio ao conto de suspense, de terror e de mistério, e ao conto policial. Mas não há essas limitações – também aqui, além de Robert Louis Stevenson, despontarão autores como Montaigne, Voltaire e Valéry. Já se vê que os idiomas de partida são o inglês e o francês – e a esses limites acredito dever respeito, para não entregar aos meus leitores más versões (pior que um mal texto original é uma má tradução, pelo que encerra de fraudulento e ofensivo à arte alheia, em maior ou menor grau). Por último, aqui igualmente serão divulgadas obras minhas ou com participação minha, nesse exercício sublime e desafiador que é a arte de traduzir. Algo mais sobre mim poderá ser visto no campo próprio deste Blog. Em poucos termos, no entanto, declaro-me um amante da boa literatura e da boa música, e me ocupo a, sempre deslumbrado, assimilar essa mágica exclusiva que leio, ouço e sinto, e vertê-la na expressão inseparável de mim: a nossa sempre perturbadora língua portuguesa. Espero que aproveitem.