“O Condutor de Ônibus”, E. F. Benson

Também na página “Inéditos”, confira a tradução de “The Bus-Conductor”, de E. F. Benson.

O conto “The Bus-Conductor” (“O Condutor de Ônibus”), de Edward Frederic Benson (1867-1940), foi originalmente publicado na revista britânica Pall Mall Magazine, em 1906. Benson, além de escritor, foi um destacado atleta, tendo inclusive representado a Inglaterra em competições de patinação artística no gelo. Apesar de mais conhecido pela série “Mapp and Lucia”, Benson alcança seu máximo efeito expressivo, na minha opinião, em seus intrigantes contos de fantasmas. A tradução que segue, publicada na revista Arte & Letra – edição U (Curitiba, 2013), é atualmente o único texto de Benson disponível no Brasil; mas outros virão em breve! Tive a oportunidade de visitar um dos endereços de Benson em Londres, no número 25 do Brompton Square: é a casa que se vê na foto, que pode bem ser pensada como a casa do conto. Muito bom proveito!

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O CONDUTOR DE ÔNIBUS

E. F. Benson

Tradução de Sérgio Rebouças

Meu amigo Hugh Grainger e eu tínhamos acabado de retornar de uma visita de dois dias ao interior, onde havíamos nos hospedado em uma casa de sinistra reputação que se supunha assombrada por fantasmas de um tipo peculiarmente assustador e hostil. A própria casa reunia as características comuns do gênero, em estilo jacobino e com painéis de carvalho, longas passagens escuras e quartos de tetos abobadados. Situava-se, além disso, muito distante, envolvida pelos ramos de sombrios pinheiros que murmuravam e sussurravam no escuro, e durante todo o tempo em que estivemos lá, uma ventania vinda do sudoeste com torrentes de reprovadora chuva havia predominado, de modo que dia e noite estranhas vozes gemiam e flauteavam nas chaminés, uma companhia de inquietos espíritos mantinha colóquio entre as árvores, e repentinas marchas e batidas acenavam desde as vidraças. Mas apesar dessas condições ao redor, que já eram suficientes por si próprias – pode-se quase dizer – para espontaneamente gerar fenômenos ocultos, nada de qualquer ordem tinha ocorrido. Devo acrescentar, além do mais, que meu próprio estado de espírito estava singularmente predisposto a receber ou até a inventar as visões e os sons que tínhamos ido buscar, pois me encontrava, confesso, durante todo o tempo em que ali permanecemos, em um estado de abjeta apreensão, e me deitei acordado ambas as noites em meio a horas de aterrorizado desassossego, com medo do escuro, e com ainda mais medo do que uma vela acesa poderia me revelar.

Hugh Grainger, na noite seguinte ao nosso retorno à cidade, jantara comigo, e após o jantar, nossa conversa, como era natural, logo voltou a esses intrigantes tópicos.

– Mas não posso imaginar por qual motivo você vai em busca de fantasmas – disse ele – porque seus dentes estavam rangendo e seus olhos saltando fora da cabeça durante todo o tempo em que esteve lá, e isso por puro pavor. Ou você gosta de ficar com medo?

Hugh, ainda que em geral inteligente, é estúpido em certos aspectos, e aí está um deles.

– Ah, claro, gosto de ficar com medo – respondi –. Quero ser feito de arrepio e arrepio e arrepio. O medo é a mais absorvente e voluptuosa das emoções. Esquecemos todo o resto quando estamos com medo.

– Bem, o fato de que nenhum de nós viu qualquer coisa – disse ele – confirma o que sempre pensei.

– E o que você sempre pensou?

– Que esses fenômenos são puramente objetivos, e não subjetivos, e que o estado de espírito de alguém nada tem a ver com a faculdade humana que os percebe, nem tampouco as circunstâncias ou os ambientes têm algo que ver com eles. Veja Osburton. Tem há anos a reputação de ser uma casa assombrada – e certamente reúne todos os acessórios de uma. Veja você mesmo, também, com todos os nervos à flor da pele, temeroso em olhar ao redor ou acender uma vela por medo de ver algo! Seguramente apareceriam para o homem certo no lugar certo, se fantasmas fossem subjetivos.

Levantou-se, acendeu um cigarro, e olhando para ele – que media por volta de seis pés de altura, tanto quanto era largo –, senti uma resposta nos lábios, pois não pude evitar que meu pensamento retrocedesse a certo período de sua vida, quando, por alguma causa que, ao que sei, nunca contou a ninguém, ele se converteu em uma trêmula massa de nervos desordenados. Curiosamente, no mesmo momento e pela primeira vez, ele próprio começou a falar sobre isso.

– Você pode objetar que tampouco valia a pena para mim ir até lá, porque muito claramente eu era o homem errado no lugar errado. Mas eu não era. Você, mesmo com suas apreensões e expectativas, nunca viu um fantasma. Mas eu sim, apesar de ser a última pessoa no mundo que você imaginaria que pudesse ter visto um, e embora meus nervos hoje estejam recuperados, aquilo me desfez em pedaços.

Sentou-se novamente na cadeira.

– Sem dúvida você recordará que fiquei aos pedaços – continuou ele – e como acredito que estou saudável de novo agora, gostaria de lhe contar algo a respeito. Mas antes não podia; não conseguia falar disso com ninguém. Ainda assim, não havia nenhuma razão para temer, pois o que vi foi certamente o mais prestativo e amigável fantasma. Mas ele surgiu do plano das sombras; parecia de repente fora da noite e do mistério que permeia a vida.

“Quero primeiro lhe expor muito concisamente minha teoria a respeito da aparição de fantasmas – prosseguiu ele – e posso explicar isso melhor por uma analogia, uma imagem. Imagine então que você, eu e todo o mundo somos pessoas cujo olho se encontra do outro lado de um minúsculo buraco aberto em uma folha de papelão que está continuamente se movendo e girando em volta. Face a face com essa folha de papelão há outra, que também, por leis próprias, está em perpétuo, mas independente movimento. Nela também há um buraco, e quando, de maneira aparentemente fortuita, esses dois buracos, aquele através do qual estamos sempre olhando e o outro no plano espiritual, nivelam-se um em frente ao outro, vemos  através de ambos, e então apenas as imagens e os sons do mundo espiritual tornam-se visíveis ou audíveis para nós. Com a maioria das pessoas, esses buracos nunca ficam nivelados durante toda a vida. Mas na hora da morte sim, e então essas pessoas restam imóveis. É assim, imagino eu, que se ‘atravessa’.

“Agora, em certas naturezas, essas aberturas são relativamente amplas e estão em constante oposição. Videntes, médiuns são assim. Entretanto, ao que sei, não tenho poderes videntes nem mediúnicos. Sou portanto o tipo de pessoa que há tempos convenceu a si mesma de que nunca veria um fantasma. Era, por assim dizer, um incalculável acaso que minha diminuta abertura de observação ficasse nivelada com a outra. Mas ficou: e me arrastou para fora do tempo”.

Eu já tinha ouvido essa teoria antes, e embora Hugh a expusesse de forma mais pitoresca, não havia nada minimamente convincente ou prático nela. Podia ser assim, ou na mesma medida podia não ser.

– Espero que seu fantasma tenha sido mais original que sua teoria – disse eu, a fim de trazê-lo de volta ao ponto.

– Sim, acho que foi. Você mesmo julgará.

Adicionei carvão e reanimei o fogo da lareira. Hugh tem, assim sempre considerei, um grande talento para contar histórias e aquele senso dramático tão caro ao narrador. De fato, no passado sugeri a ele que levasse isso como uma profissão, sentando perto da fonte em Piccadilly Circus, quando as condições estivessem, como de costume, desfavoráveis, para contar histórias aos passantes na rua, à maneira árabe, a troco de gorjetas. A maior parte da humanidade, estou consciente, não gosta de histórias longas, mas para alguns poucos, entre os quais me incluo, que realmente gostam de escutar compridos relatos de experiências, Hugh é o narrador ideal. Não me importo com suas teorias, ou com suas analogias, mas quando se trata de fatos, de coisas que aconteceram, gosto que ele seja demorado.

– Prossiga, por favor, e devagar – disse eu –. A brevidade pode até ser a alma da perspicácia, mas é a ruína do contador de histórias. Quero ouvir quando, onde e como tudo aconteceu, o que você tinha almoçado, onde havia jantado e o que…

Hugh começou:

– Foi em 24 de junho, exatamente dezoito meses atrás – disse ele –. Eu havia deixado meu apartamento, você deve lembrar, e vindo do interior para passar uma semana com você. Tínhamos jantado sozinhos aqui…

Não pude deixar de interromper.

– Você viu o fantasma aqui? – perguntei –. Neste cubículo de casa situado no meio de uma rua moderna?

– Eu estava na casa quando o vi.

Mantive-me em silêncio.

– Tínhamos jantado sozinhos aqui em Graeme Street – continuou ele –; após o jantar, saí direto para alguma festa, e você parou em casa. Seu criado não esperou pelo jantar, e quando perguntei por onde ele andava, você me disse que ele estava doente e, ao que me pareceu, mudou de assunto um tanto abruptamente. Você me deu a chave de casa quando saí, e no meu retorno verifiquei que você já tinha ido para a cama. Havia, porém, muitas cartas para mim, que reclamavam respostas. Escrevi-as imediatamente e postei-as na caixa de correio em frente. Então suponho que era um tanto tarde quando subi.

“Você me havia posto no quarto da frente, no terceiro andar, olhando para a rua, um quarto que me pareceu ser geralmente ocupado por você mesmo. Era uma noite muito quente, e embora houvesse um luar quando parti para a minha festa, no meu retorno o céu inteiro estava coberto de nuvens, e ambos prenunciavam uma tempestade para antes da manhã. Eu me sentia muito sonolento e pesado, e não foi antes de ir para a cama que percebi pelas sombras dos caixilhos nas persianas que apenas uma das janelas estava aberta. Mas não parecia valer a pena levantar da cama para abrir a outra janela, embora estivesse um tanto abafado e desconfortável, de modo que preferi dormir.

“Não lembro qual a hora quando acordei, mas por certo ainda não era madrugada, e não me recordo de ter vivenciado tão extraordinária quietude como a que então dominava. Tampouco havia sons de pedestres ou de tráfego viário; a música da vida parecia absolutamente muda. Mas agora, ao invés de sonolento e pesado, sentia-me perfeitamente revigorado e esperto, embora deva ter dormido uma hora ou duas no máximo, já que sequer era madrugada, e o esforço que antes parecera não valer a pena fazer, aquele de levantar da cama e abrir a outra janela, mostrava-se bastante fácil agora, de modo que ergui a persiana, deixando-a completamente aberta, e inclinei-a para fora, pois de alguma maneira eu estava fervendo e ansiava por ar. Mesmo do lado de fora a opressão era bem perceptível, e embora, ao que me consta, eu não seja facilmente propenso a sentir os efeitos mentais causados pelo clima, notava um terrível arrepio vindo sobre mim. Tentei investigar isso, mas sem sucesso; o dia anterior tinha sido agradável, eu esperava por um dia agradável amanhã, e mesmo assim estava cheio de uma inominável apreensão. Sentia-me, além de tudo, horrivelmente sozinho naquela quietude antes da madrugada.

“Então ouvi de repente e vindo de não muito longe o som de algum veículo que se aproximava; eu podia discernir o passo de dois cavalos andando em marcha lenta. Estavam vindo, embora ainda não se visse, pela rua, e mesmo essa indicação de vida não amenizou aquele terrível sentimento de solidão de que falei. E também a turva e impronunciada maneira com que vinham pareceu-me ter algo que ver com a causa da minha opressão.

“Então o veículo apareceu à vista. Inicialmente não pude distinguir o que era. Depois vi que os cavalos eram negros e tinham longas caudas, e o que eles arrastavam era feito de vidro, mas tinha uma base preta. Era um carro fúnebre. Vazio.

“Movia-se desse lado da rua. Parou em frente à sua porta.

“Logo me ocorreu a óbvia solução. Você havia dito no jantar que seu criado estava doente e me pareceu relutante em falar mais sobre essa doença. Sem dúvida, assim imaginei, ele estava morto, e por alguma razão, talvez porque você não queria que eu soubesse algo a respeito disso, o corpo seria removido durante a noite. Isso, devo lhe dizer, me passou pela cabeça instantaneamente, e não me ocorreu quão improvável de fato era, até que a próxima coisa acontecesse.

“Ainda estava me inclinando para fora da janela, e também refletindo, mesmo que apenas momentaneamente, sobre como era estranho que eu visse coisas – ou mais propriamente a única coisa para que estava olhando – com tanta nitidez. Claro, havia uma lua atrás das nuvens, mas era curioso como cada detalhe do carro fúnebre podia ser visto. Havia apenas um homem, o motorista, no carro, e no mais a rua seguia absolutamente vazia. Era para ele que eu olhava agora. Podia ver cada detalhe de suas roupas, mas de onde eu estava, tão alto acima dele, não conseguia ver seu rosto. Ele vestia calças cinzas, botas marrons, um casaco abotoado até em cima e um chapéu de palha. Sobre um ombro havia uma alça, que parecia sustentar algum tipo de bolsa pequena. Ele parecia exatamente como – bem, pela minha descrição, com o que exatamente parecia ele?

– Ora, um condutor de ônibus! – disse eu, instantaneamente.

– Assim pensei, e exatamente quando estava pensando isso, ele levantou a vista para mim. Tinha um rosto um tanto longo e afilado, e em sua bochecha esquerda havia um sinal com uma protuberância de cabelos escuros. Tudo isso era tão nítido como se fosse meio-dia, e como se eu estivesse a apenas uma jarda dele. Mas – era tudo tão instantâneo que leva muito tempo para contar – sequer tive tempo de achar estranho que o motorista do carro estivesse vestido de maneira tão pouco fúnebre.

“Então ele acenou seu chapéu para mim e sacudiu o polegar sobre o ombro.

“– Só cabe mais um dentro, senhor” – disse ele.

“Havia algo tão abominável, tão rude, tão inflexível naquilo que instantaneamente puxei minha cabeça para dentro, baixei a persiana de volta, e então, por algum motivo que desconheço, liguei a luz elétrica na intenção de ver qual era a hora. Os ponteiros de meu relógio marcavam onze e meia.

“Foi assim que pela primeira vez, creio, uma dúvida me passou pela cabeça quanto à natureza do que eu tinha acabado de ver. Mas apenas tornei a desligar a luz, fui para a cama e comecei a pensar. Eu havia jantado; tinha ido a uma festa, voltado e escrito cartas, tinha ido para a cama e dormido. Então como poderiam ser onze e meia?… Ou… que onze e meia era essa?

“Foi quando outra fácil solução me ocorreu; meu relógio devia ter parado. Mas não; eu podia ouvi-lo funcionando.

“Tudo estava quieto e silencioso outra vez. Eu esperava a cada momento ouvir passos abafados nas escadas, passos movendo-se lenta e curtamente sob a pressão de uma pesada carga, mas vindo de dentro da casa não havia nenhum som de qualquer tipo. No lado de fora também predominava o mesmo silêncio morto, enquanto o carro fúnebre esperava frente à porta. Os minutos batiam e batiam, e lentamente comecei a ver uma diferença na luz do quarto, compreendendo que a madrugada começava a desaparecer do lado de fora. Mas como isso tinha acontecido, então, se o corpo era para ser removido à noite e não havia sido ainda, e o carro fúnebre ainda esperava, quando a manhã já estava chegando?

“Passado pouco tempo, levantei da cama outra vez, e com a sensação de que a força do corpo arrefecia, fui até a janela e puxei de volta a persiana. A madrugada estava partindo rapidamente; a rua inteira acendia-se com aquele tom de luz prateada da manhã. Mas não havia nenhum carro fúnebre lá.

“Uma vez mais olhei em meu relógio. Marcava exatamente quatro e quinze. Mas eu juraria que nem meia hora havia passado desde que o relógio me disse que eram onze e meia.

“Logo uma curiosa sensação dupla, como se eu estivesse vivendo no presente e ao mesmo tempo houvesse vivido em algum outro tempo, caiu sobre mim. Era a madrugada de 25 de junho, e a rua,  naturalmente, estava vazia. Mas um pequeno instante antes o motorista de um carro fúnebre tinha falado comigo, e eram então onze e meia. O que era aquele motorista, a que plano pertencia ele? E de novo que onze e meia era aquela que eu havia visto gravada no mostrador do meu relógio?

“Então disse a mim mesmo que a coisa toda tinha sido um sonho. Mas se você me perguntar se acredito no que disse a mim mesmo, devo confessar que não.

“Seu criado não apareceu para o café na manhã seguinte, nem o vi mais antes de partir à tarde. Acho que se o encontrasse, eu teria contado a você a respeito de tudo isso, mas era ainda possível, você sabe, que o que eu tinha visto fosse um real carro fúnebre, dirigido por um real motorista, apesar da sinistra alegria do rosto que ele levantou para mim e da frivolidade de sua mão apontada. Era possível que eu tivesse caído no sono logo depois de vê-lo e dormido durante a remoção do corpo e a partida do carro fúnebre. Então não falei disso para você”.

Havia algo admiravelmente franco e prosaico em tudo isso; aqui não se trata de casas de estilo jacobino com painéis de carvalho e circundadas por úmidos pinheiros, e de alguma maneira a ausência de ambientes adequados torna a história toda ainda mais impressionante. Por um momento, no entanto, uma dúvida me assaltou.

– Não me diga que isso tudo foi um sonho – disse eu.

– Não sei se foi. Posso apenas dizer que acredito que estava bem acordado. Em todo caso o restante da história é… curioso.

“Saí da cidade à tarde – continuou ele – e posso dizer que sequer por um momento consegui ter a sensação evocativa do que eu havia visto ou sonhado aquela noite. Estava sempre presente em mim como alguma visão ainda não realizada. Era como se algum relógio tivesse marcado todos os quartos de hora, e eu ainda esperasse ouvir qual o horário certo.

“Exatamente um mês depois estive em Londres novamente, mas apenas por um dia. Cheguei à estação Victoria por volta das onze e tomei o metrô para Sloane Square na intenção de ver se você estava na cidade e se me concederia um almoço. Era uma manhã escaldante, e eu tencionava pegar um ônibus partindo de King’s Road até Graeme Street. Havia um estacionado na esquina logo quando saí da estação, mas vi que o topo estava completo, e o interior parecia estar lotado também. Logo que subi, o condutor, que, suponho, estivera dentro recolhendo bilhetes ou algo do tipo, saiu junto à passagem a pouca distância de mim. Usava calças cinzas, botas marrons, um casaco preto abotoado, um chapéu de palha, e sobre seu ombro havia uma alça de que pendia sua pequena máquina de perfurar bilhetes. Vi seu rosto, também; era o rosto do motorista do carro fúnebre, com uma protuberância na bochecha esquerda. Então ele falou comigo, erguendo o polegar acima do ombro.

“– Só cabe mais um dentro, senhor” – disse ele.

“Com isso, uma espécie de pânico tomou posse de mim, e lembro que gesticulei ferozmente com meus braços, gritando: ‘não, não!’ Mas naquele momento eu vivia não na hora que então estava passando, mas naquela hora que havia passado um mês antes, quando me inclinei a partir da janela aqui do seu quarto pouco antes que a madrugada terminasse. Nesse momento também soube que minha abertura de observação tinha estado nivelada com a abertura do mundo espiritual.

“O que eu tinha visto ali encerrava algum significado, agora sendo cumprido, para além do significado dos acontecimentos triviais de hoje e de amanhã. Os Poderes daquilo que conhecemos tão pouco obravam visivelmente diante de mim. E fiquei lá na calçada sacudindo e tremendo.

“Eu estava em frente ao posto de correio situado na esquina, e logo que o ônibus partiu, meu olhar caiu no relógio da janela de lá. Não preciso dizer a você qual era a hora.

“Talvez nem precise contar o resto, pois você provavelmente o imagina, já que não terá esquecido o que aconteceu na esquina de Sloane Square no final de julho, no verão antes do último. O ônibus arrancou da calçada em direção à rua de modo a contornar uma van que estava parada em frente. Naquele momento desceu a King’s Road um grande automóvel em um percurso terrivelmente perigoso. Bateu de cheio no ônibus, trespassando-o como uma furadeira perfura uma tábua.

Ele parou.

– E essa é minha história – disse ele.

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